"Sobre fotografia, com mais ou menos poesia".

Carnaval da infância


Sempre que me pego lembrando da infância é inevitável a associação com o carnaval. Fui criado nos subúrbios do Rio e o carnaval de rua está entre minhas melhores lembranças. E eu aproveitei muito bem, quando ainda não existia Sambódromo, não existia TV filmando tudo 24 horas, não existia o luxo e a ostentação nas Escolas de Samba e o que existia era um carnaval cru, no asfalto, apaixonante, solto e cheio de criatividade popular. Eram meados da década de 1960 e todo mundo se fantasiava de tudo: morcego, diabo-rei, caveira e tantas outras. Mas o terror da meninada mesmo era o Clóvis…

Saíamos de manhã cedo para a rua, sempre reservando uma rota rumo ao portão de casa para uma fuga estratégica. Sim, porque os Clóvis andavam em bandos, com fantasias folgadas, cheias de cores, máscaras aterrorizantes e nas mãos um pedaço de pau com um barbante e na ponta uma bexiga de boi inflada e secada ao sol, usada para bater em todo mundo que passasse pela frente: homens, mulheres e, principalmente, crianças. Quanto maior o bando de Clóvis, maior o barulho que faziam batendo com as bexigas no chão e maior o medo e o suor frio esperando eles se aproximarem. Mas não ficávamos paralisados, antes preparávamos uma tática de guerrilhas para colocar em prática no momento do confronto: grupos de meninos e meninas ficavam espalhados pelos cantos das ruas, fora ou dentro dos muros das casas, nas calçadas e os mais ousados, no meio da rua. E toca a provocar os Clóvis com gritarias, ofensas inocentes, esperando o ataque. E este não tardava. O bando avançava com fúria, se espalhava batendo com força as bexigas nas costas dos que já corriam (e doía, como doía), gritando um mantra que jamais esqueci: “Eia, parente!”.

Puro terror, pura diversão. O coração ficava a mil, a corrida acelerada para a proteção do muro de casa, a adrenalina correndo solta, por vezes uma urina incontrolável escorrendo pelo calção, tamanho o medo.

Em 1983, já adulto, fotografei um pequeno bando que ainda circulava pelos subúrbios. E eles ainda tinham a mesma aparência, usavam as mesmas fantasias e as mesmas bexigas de boi secadas ao sol. Mas estavam desaparecendo. As bexigas foram mudando para serem de borracha, as fantasias foram ficando chiques… Hoje vejo em matérias atuais que os Clóvis renasceram, que ainda existem por lá. Só que vi as fotos dos Clóvis do presente e não encontrei nenhum que se aproximasse dos que vivenciei.

Achei essa foto, única, no filme cromo de 83. Para mim, ainda parecem de arrepiar.

2018

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